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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Enquanto eu esperava Silvia e Clara perto de um banheiro do maior shopping center de Recife, um homem de terno e gravata passou por mim, virou-se, me perguntou “tá sozinho?”, balancei a cabeça em sinal de “não” e ele seguiu seu rumo. Memorizei esse pequeno gesto entre a miríade do dia porque expressou solidariedade, ele soube fazer uma pergunta fácil de ser respondida por quem tem dificuldade de comunicação, minha paralisia cerebral não o fez supor que sou mentalmente incapaz e pelo contraste com a mulher sem deficiência que havia acabado de entrar no banheiro para PCD na minha presença.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
No fim de abril, fomos a Porto de Galinha para comemorar os 90 anos da minha mãe. Ao chegarmos ao hotel, Silvia foi à recepção fazer o check-in enquanto o resto da família ficou no carro, as meninas foram botar as pulseiras de hospede, me deixando sozinho no estacionamento e, como a porta do meu lado estava travada e a janela, fechada, minha única saída era ir para o banco do motorista, para sair do sol. Voltaram com um funcionário para colocar minha pulseira, depois da surpresa inicial todos da família entenderam meu raciocínio como óbvio, mas ele repetiu três vezes “ele (eu) é esperto” sem se dirigir a mim e com espanto. Em seguida, fomos para o restaurante do hotel para almoçar, Silvia foi ao banheiro com sua primeira filha, o garçom foi à nossa mesa, entregou um cardápio a Clara e outro a minha enteada mais nova, só me deu um quando demonstrei expressamente que o queria e, ainda assim, o botou de cabeça para baixo – ou seja, este supôs que eu não saberia ler de modo algum!
Antes de voltar para João Pessoa, passamos no maior shopping center de Recife. Num momento em que fiquei sozinho, aproveitei para andar na cadeira de rodas pelas imediações, uma atendente de um café se preocupou e me ofereceu ajuda educadamente, só por solidariedade – foi uma das poucas atitudes boas que vi nesta viagem. Antes de saímos do shopping, fomos a um banheiro, Silvia e Clara entraram no feminino enquanto fiquei esperando perto do para pessoas com deficiência e vi uma mulher sem deficiência entrar neste. Tal banheiro estava com um vazamento, tivemos de ir a outro, a mesma situação se repetiu e, quando finalmente entrei no banheiro para PCD, este estava imundo. O banheiro para PCD da parte mais sofisticada do maior shopping de João Pessoa fica trancado e, quando alguém com deficiência precisa, tem de pedir a chave a uma atendente – pelo menos sua administração tomou uma providência a respeito – e sempre há carros estacionados nas vagas para PCD – o que Clara notou não ocorrer em Curitiba –, mas em geral os habitantes daqui tratam melhor esse tipo de gente.
Nasci em Campo Grande-MS, mas fui morar na região metropolitana de Recife aos 6 meses, onde passei a maior parte da vida, portanto o considero a “minha” cidade e, devido a essas atitudes, nesta viagem não tive vontade alguma de voltar a morar lá, o que me entristeceu.
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Há não sei quantos anos, nos dias em que não tínhamos empregada passei a arrumar nossa cama. Silvia resistiu a isso por muito tempo, talvez por achar que era uma crítica implícita – nunca foi – e/ou porque é um tanto complicado para mim – aqui no Nordeste, em alguns dias essa tarefa me deixa molhado de suor – e muitas vezes se antecipava, até que, no início do ano, percebeu que estou a fazendo melhor do que ela.
Acho que este foi o primeiro vídeo que eu mesmo fiz, sozinho, colocando o tablet em cima da minha cadeira adaptada e tocando em “play” com a articulação do mindinho esquerdo em vez da ponta de um dedo. Dupliquei a velocidade para tornar palatável assisti-lo.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Clara anda um pouco preguiçosa para estudar e fazer as tarefas de casa. No fim da tarde de ontem, Silvia saiu para buscar sua segunda filha e Clara, foi estudar Geografia comigo enquanto eu assistia um jogo de futebol. Sua leitura ainda não é muito fluente, sempre que encontrava uma palavra que não sabia prenunciar direito eu a “falava” pelo Livox e até expliquei o significado de uma, sem demorar muito. Já havia a ajudado a estudar e fazer as tarefas em outras ocasiões, mas foi a primeira vez que o consegui com alguma desenvoltura, corrigir seus erros e dar explicações em tempo hábil, sem precisar voltar muito atrás na conversa. Foi o suficiente para Clara ficar toda feliz, dizer que agora estudar tornou-se divertido, que passará a fazê-lo de boa vontade, etc!
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Ontem no fim da tarde, ao tentar colocar o carregador do meu fone de ouvido para marcar a página do livro que estou lendo, o derrubei no chão, quase caí da cadeira e involuntariamente puxei totalmente o cordão da bermuda com a qual estava – comprei esta e o fone recentemente e ainda não sei se continuarei podendo usá-los. Passei a hora seguinte muito nervoso, a ponto de explodir. Cheguei a um bom termo com a paralisia cerebral, mas é humanamente impossível não ter esses momentos de exasperação com ela.
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Clara tem feito as tarefas escolares de casa com sua irmã mais nova, na semana passada uma era escrever um poema em torno de um coração estilizado, o qual seria o tema. Como era o correto, minha enteada tentaria induzir Clara a escrevê-lo por si própria, mas ela resolutamente se negava a fazê-lo, o que poderia dar em briga, confusão num momento em que Silvia estava numa reunião de trabalho e precisava de silêncio. Com minha limitada capacidade de comunicação, era impossível convencer Clara a escrevê-lo e não quis deixar isso para Silvia resolver após a reunião. A solução que encontrei foi chamar Clara para a frente do meu monitor e digitar este poema:
Meu coração bate forte
Quando me alegro
Quando brinco
Quando corro
Sinto a vida
Não foi o ideal, foi o que consegui fazer e, no sufoco do cotidiano, certamente muitos pais e mães tomam essa atitude. Só que sempre me recusei a sequer a tentar a escrever poesia – o que a gente não faz por uma filha?! Não sei se acho esse episódio cômico, ridículo ou desconcertante.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Temos um grupo de WhatsApp com amigos de Silvia para discutir livros e filmes. Pela repercussão do filme “Ainda Estou Aqui”, em janeiro lemos o livro em que se baseou. Um livro toca cada pessoa de forma diferente. Silvia se identificou bastante com Eunice Paiva – pela mesma profissão, adorar ler, etc –, cuja história é o principal tema do livro, diferentemente do filme, que se concentra no desaparecimento do seu marido.
Minha identificação foi com Marcelo Rubens Paiva, pois minha vida tem alguns paralelos com a dele: ter uma deficiência física (diferente), escrever bem – ao menos é o que me dizem –, ido para a UNICAMP, onde eu gostaria de estudar Economia, uma projeção (bem menor e mais curta) na mídia nacional no período 1998-2006 devido ao meu site, e uma mãe mentalmente doente – esquizofrenia, no caso da minha – de quem cuidou por muitos anos, embora eu tivesse infinitamente menos recursos para isso. A história de Eunice, quando recebeu o diagnóstico de Alzheimer e precisou ser juridicamente interditada, tê-lo escolhido como seu curador porque era "o homem da casa" me pegou. Não que eu o fosse em termos gerais, pois meu pai é vivo até hoje, mas porque todos da minha família fugiam dos problemas e situações gerados pela esquizofrenia dela, o que eu não podia fazer e frequentemente acabava sendo o único a enfrentá-los, a me esgoelar para cuidar dela, salvar sua vida várias vezes e houve muitas ocasiões em que minha própria sanidade mental quase ruiu.
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O termo Übermensch usado por Nietzsche geralmente é traduzido como Super Homem, mas há filósofos que preferem além-do-homem porque se refere a um tipo de pessoa capaz de se auto superar, inclusive em suas fraquezas e fragilidades, e não que tem alguma superioridade sobre os outros. Por esse conceito tocar em algo profundo da psique humana e/ou pela difusão das ideias de Nietzsche, é frequente que alguém com deficiência que consegue superar as expectativas da sociedade e da família ser chamado de Super Homem (ou Mulher). Com este substrato, um grande segmento da mídia gosta de mostrar pessoas com deficiência “vencedoras” para validar a proposta do neoliberalismo progressista, de que qualquer problema social pode ser resolvido pelo mercado, esforços individuais e reconhecimento para minorias e as mulheres – é o que chamo de ideologia da superação. Acontece que ninguém gosta de viver lutando contra o próprio corpo – no caso, as partes do cérebro responsáveis pela coordenação motora – e, embora tenha conhecido um homem com PC que emoldurava esta condição com a filosofia nietzschiana, as outras pessoas com essa deficiência que vi se pronunciarem a respeito recebem a tal elogio com certo incômodo, irritação, ranger de dentes, não acharam muita graça – particularmente, nesse contexto sempre lembro da música “Cowboy Fora da Lei” de Raul Seixas. O único aspecto inequivocamente bom que vejo na auto superação é que, ao menos no meu caso, foi um forte atrativo para as mulheres😉
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
Semanas atrás, ao pensar no que chamo de "Complexo de Mulher Maravilha" – o qual, hoje, acho que, dentro da Psicologia Analítica, deveria ter considerado um novo arquétipo surgido no Século XX (ignoro se algum psicólogo junguiano já tratou disso) – enumerei as (seis) mulheres que conheci que o tinham. Uma é amiga de Silvia, as outras cinco foram ou são ligadas a mim, me surpreendi ao constatar que todas estas se apaixonaram por mim, embora duas não tenham ido além da amizade, uma por falta de interesse da minha parte e a outra por incapacidade de ter um relacionamento com um homem com deficiência; o ímpeto de resolver tudo para todos não está necessariamente acompanhado de um grande poder de realização, afinal eram mulheres de carne e osso, com seus limites. Foi desconcertante perceber um padrão depois de décadas.
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- Escrito por: Ronaldo Correia Junior
O governo estadual está promovendo o Paraíba Beach Games, um dos quais foi o circuito brasileiro de vôlei de areia. Como eu e minha enteada mais nova – que gosta bastante de mim, tanto que me obedece mais do que Clara – curtimos muito vôlei, fomos às semifinais deste. Não sabia direito o que ia encontrar em acessibilidade, em particular como a cadeira de rodas chegaria à arena através da areia. Demos a sorte de encontrarmos logo uma vaga de estacionamento a dois quarteirões de lá, as meninas ajudaram a superar as irregularidades da calçada, na praia havia esteiras de borracha para cadeiras de rodas, o setor reservado para pessoas com deficiência era a área VIP – mas contei só 5 dessas pessoas, incluindo eu –, o que foi motivo de inúmeras brincadeiras e, como chegamos cedo, pude escolher o melhor lugar. Quando os jogos acabaram, minhas enteadas conseguiram tirar fotos com os jogadores que foram às últimas Olimpiadas – não o fiz porque isso implicava descer uma arquibancada bem íngreme, com grande risco de queda. De novo, fiquei pensando que o caminho para gostar de João Pessoa é a praia.
Há três semanas, os moradores do nosso prédio organizaram a exibição de um filme infantil numa sala do condomínio. Como já o tinha visto no cinema, Clara não ficou na sala, mas finalmente se entrosou com as outras crianças e fez ao menos uma amiga. Desde então, nos fins de semana ela tem descido, corrido, brincado ao ar livre em vez de ficar enfiada em dispositivos eletrônicos, o que raramente o clima de Curitiba permitia.
Na semana passada, minha enteada mais nova falou “homem não serve para nada” e só depois se tocou que sou um – me limitei a rir. Ontem, ela repetiu a mesma frase, também só se tocou da minha presença ao acabar de falar e tentou remendar dizendo “é que o tio é tão legal que parece uma mulher”! Foi de lascar, às vezes ser o único homem da casa não é mole😄
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